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Quase sinceros

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O da época, o clima beligerante entre EUA e União Soviética, aquela expandindo sua “liberdade” e retirando o Velho Mundo dos escombros da Segunda Guerra, esta financiando o comunismo na Ásia e no resto da América. Segundo os defensores da Ditadura brasileira, os militares fizeram um contragolpe, ou o que os americanos chamariam hoje de “ataque preventivo”. Com a desculpa do perigo de um golpe comunista, um golpe militar.

O contexto atual é o que a apresentação do texto “1964”, de O Globo: “Desde as manifestações de junho…”. O texto em si é aberto com uma provocação: “Diante de qualquer reportagem ou editorial que lhes desagrade, é frequente que aqueles que se sintam contrariados lembrem que O GLOBO apoiou editorialmente o golpe militar de 1964”.

Por esse aspecto, a rendição do jornal à voz das ruas é, no mínimo, oportunista. Com um pouco mais de franqueza, um libelo da má fé e uma simples decisão comercial. Admitindo um erro histórico e, ao mesmo tempo, justificando por que o cometeu, o jornal se entrega ao poder das ruas, mas defende sem muita cerimônia o erro que cometeu lá atrás. Diz a verdade, debochando daqueles que se sentem contrariados por reportagens suas, mas esse não é o tom de quem admite um erro e pede desculpas. Se do outro lado há gente rancorosa e mal intencionada (denunciar uma reportagem de hoje por causa do passado é isso), então que não se peça desculpas. Por outro lado, “1964” parece assumir que, independente das motivações do lado oposto, se quer admitir os próprios erros. Parece bonito, mas o texto se trai, e fica evidente que o tom é de “agora queremos ficar com vocês, mas veja bem, tivemos bons motivos para ficarmos com eles antes…”.

O que questiono agora é a motivação do mea culpa que, segundo o jornal, ficou ainda mais “necessário” depois das passeatas de junho. Repórteres da emissora foram hostilizados nas ruas, precisaram trabalhar escondidos, sem crachá e sem logomarca. Como se fosse o comando militar americano, A Folha de S. Paulo usou drones para filmar os protestos sem sofrer baixas – uma repórter sua foi agredida pela polícia antes. Estadão e Folha, aliás, foram poupados pela ignorância dos militantes, a maioria sem saber do apoio destas duas marcas, também, ao regime militar. A Globo é o grande satã, a vitrine do mal, a face mais conhecida e mais poderosa da direita brasileira.

Comecei a escrever um texto, no sábado, sobre como não sou de direita nem admirador de militares. Pretendo publicá-lo também hoje, falando sobre como não sou leitor de Olavo de Carvalho nem de Roberto Campos. Digo isto para reforçar: não se defende ditadura, nenhuma ditadura. Se você vai defender uma ditadura de direita dizendo que queria evitar uma ditadura de esquerda, não peça desculpas, porque o pedido será falso. Se você vai assumir um erro justificando por que o cometeu, não assuma. Se o estopim para esta expiação histórica é a necessidade de ser menos odiado, a imprensa nacional e O Globo perdem ótima oportunidade de fazerem a coisa certa. E a coisa certa é só uma: assumir que apoiaram um regime que afogou, eletrocutou, espancou, fuzilou, esmurrou, chutou e incinerou cidadãos brasileiros, muitos deles retirados de casa ou de seu trabalho para a morte, por agentes do Estado, transportados em carros do Estado. Há evidências de que carros de reportagem desses grupos deram apoio logístico à repressão, transportando prisioneiros. Não existe defesa possível contra isso.

Assumir o apoio editorial sem assumir que o apoio não era somente editorial é desonesto. O Globo não apoiou os militares só nas suas páginas. Escondeu os crimes, falseou a verdade, foi desonesta em momentos cruciais da recente história política brasileira. Veio a público agora fingir-se arrependida por motivação outra, não aquela única que justificaria tanta “humildade”: não se dá apoio ao assassinato de cidadãos pelo Estado. Não existe “mas”, “se bem que”, “porém” nem “no entanto”. Diante do cadáver de Herzog, “suicidado” dentro dos porões do DOI-CODI, em São Paulo, não existe “contexto” da época. Assassinato é assassinato. Diante da multidão pedindo eleições na Praça da Sé, não pode existir “porém” nem “mas”. Ou você conta o que houve, ou está mentindo — por ação ou omissão. Para a imprensa, amigos, calar é mentir.

A coragem de O Globo precisa ser completa, senão fica parecendo coisa de general da SS, no julgamento de Nuremberg, dizendo não ter feito nada de errado porque estava apenas cumprindo ordens. Ora, ninguém mata inocentes por puro ofício, somente por força do emprego. Para matar uma pessoa (ou seis milhões delas, de forma industrial), é preciso acreditar na “causa”, na justeza da motivação. Há muito que se analisar no discurso do texto “1964”, e há profissionais que farão isso com muito mais competência. Mas arrisco dizer que, mais do que o fantasma do apoio a uma ditadura, o que o texto exorcizou foi a honestidade histórica. Caberá aos analistas saber em quanto do junho de 2013 influenciou o mea culpa sobre o março de 1964.

Faço meu palpite, o que vejo é um elefante revelando ter medo de formiga. Não foi pequeno o pecado de O Globo apoiando um regime assassino, isso não se questiona. O que questiono, aqui, é a futilidade da motivação. Vejo, hoje, as ruas vazias e o Congresso Nacional de volta à sua safadeza, e lembro de uma cena hilária de Quase Famosos, de Cameron Crowe, quando uma turbulência sacode o avião da banda Stillwater, que começa a cair. E num avião que cai, as inimizades acabam, os pedidos de desculpas vicejam, a religião explode e, no clima de “últimas palavras”, Ed Vallencourt, o baterista da banda, arremata: “F***-se! Eu sou gay!”

E o avião estabiliza um segundo depois. A turbulência some, o céu azul se abre e os sinais sonoros de emergência se calam na cabine. O constrangimento é geral – e a risada de quem assiste também.

Não é a metáfora mais elegante a fazer diante de um texto que merece ser tido como histórico de O Globo. Mas faz justiça aos motivos que parecem ter levado o jornalão a assumir-se só agora, no meio da turbulência dos protestos de rua de junho. O céu azul da normalidade brasileira já começa a se abrir, os cintos vão sendo desafivelados em Brasília, a bandalheira vai retomando seu assento e O Globo, me parece, vai ficar lá, no fundo do avião, com a sensação de que poderia ter esperado um segundo a mais antes de libertar seu grito.

Abaixo, a cena do avião em Quase Famosos.

[https://www.youtube.com/watch?v=VKgS24IG3HY]


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