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Channel: O Malfazejo
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Aos meus vizinhos

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Eu decidi e desisti de escrever a vocês várias vezes sobre o que me ocorreu. Tinha medo de ofender ou soar acusatório. Decidi escrever, assim mesmo, para que você, que tem filhos  e animais de estimação, possa se proteger também. Não escrevo para agredir ninguém, até porque não sei quem matou nossa cadela. Escrevo para desabafar e mostrar o meu repúdio contra a violência gratuita de que eu fui – e você também poderá ser – vítima.

No meio das mensagens da internet sobre o que fizeram com a nossa cadela, a mamãe tocou num ponto importante. Estamos completando 40 anos na mesma rua, na mesma casa. O que, é claro, significa que todos nos conhecemos, todos sabem quem somos, todos sabem os nomes dos nossos filhos. E também dos nossos cachorros, gatos e papagaios. Vocês sabiam da existência da Bardot, onde ela morava. Sabiam que, todo santo dia, no início da noite, começariam a ouvir a voz do meu filho, o Marquinhos (vocês o conhecem também), rua acima e rua abaixo falando sem parar comigo e com ela, a Bardot, a cadela por quem ele era apaixonado. E vocês sabiam que, por conta do tamanho dela, eu iria evitar chegar perto dos bichinhos de vocês. Durante todo este tempo eu vinha ensinando ao Marcos o bom senso. Se tínhamos um cachorro grande, precisávamos aceitar que as pessoas ficam receosas. Por isso nunca desfilei com a Bardot como se fosse uma arma, como tantos fazem. Nunca a levei perto dos portões vizinhos, só pela diversão de deixar os outros cães loucos. Nunca deixei que ela se aproximasse de outros cachorros, em respeito aos seus donos. Pelo contrário: ao longo do tempo, fui colecionando episódios de desrespeito e falta de noção sobre o que é o espaço dos outros. Eu e minha cadela não podíamos passar diante de certas casas, porque o poodle, o beagle ou o pincher da casa não gostavam. A Bardot chegou a ser mordida, no calcanhar, por um poodle ensandecido e solto, na rua. No lugar de ouvir um pedido de desculpas, o que ouvi (claro, sempre pelas costas) foi um sonoro “por que esse cara traz esse cachorro pra cá?!”.

E eu voltei para casa. Eu podia ter ido perguntar o que me impedia de usar aquele pedaço da rua. Eu podia ter dito que, apesar de não parecer, aquele trecho da rua ainda era público. Se a Bardot fosse agressiva, teria matado o cachorrinho num movimento. Tamanho, força e dentes Bardot possuía, suficientes para isso.

Mas não. Pelo contrário, foi sozinha a responsável pelo fim do medo que o Marcos tinha de cachorro. Vinha aos poucos acabando com o medo do Alexandre, o filho da Mônica, neto do Tapajós e da Dona Cleide. Com o meu esforço e a docilidade da cadela, a Bardot vinha se aproximando cada vez mais dos meninos na praça. Quem viu o Gabriel, o Jordan, o Alê e o Marcos brincando com ela, sabia que não havia nada de perigoso ali.

Eu decidi escrever isso a vocês, meus vizinhos, para falar da profunda tristeza de ter descoberto, da pior forma possível, que tenho vizinhos capazes de matar. Se vocês não sabiam disso, como eu não sabia, precisam saber. Nosso cachorro foi morto porque estava no cio havia dias, e uivava durante a madrugada. O assassino – ou assassina – da Bardot não suportava o barulho, que iria durar mais uma ou duas noites. Escrevo enquanto aguento o samba mal tocado da vizinhança, as músicas em alto volume, as buzinas tocadas às 7h da manhã de domingo, os carros barulhentos da madrugada. E nunca, nunca pensei em envenenar ninguém por isso.

A Bardot urinou e defecou sangue, por causa dos ferimentos internos. Teve convulsões por causa dos danos ao sistema nervoso, ficou cega e gritou durante quatro horas, tendo alucinações. Vocês todos ouviram o sofrimento dela. E ela gritou, uivou, rosnou bem alto, graças ao curto circuito nervoso que o veneno causou. Eu sei que vocês ouviram, mesmo que as casas estivessem fechadas e as luzes apagadas. Aquele cachorro de 40kg literalmente estrebuchou no meu colo, enquanto eu lutava para hidratá-la e tirar o veneno do corpo dela.

Todas as noites dávamos cinco ou seis voltas na pracinha. Se as vizinhas do prédio chegassem com seus cachorrinhos, dávamos meia volta. Se os cachorrinhos da esquina contrária estivessem na rua, dávamos outra meia volta. Frequentemente ficávamos no meio da pracinha, impedidos pelo meu bom senso de irmos para qualquer lado. E mesmo assim, alguém a matou.

Mas eu não vou envenenar ninguém. Ao contrário, me esforço para nos darmos bem. Por isso mesmo, agora que sei que um de vocês é um criminoso que mata cachorros, preciso alertá-los sobre isso. Ontem, enquanto vocês ainda dormiam e para não incomodá-los, eu enterrei a cadela da minha família ali mesmo, onde ela passeou no dia anterior, guiada pelo Marquinhos.

Eu não escrevi essa carta para lhe acusar de nada. Se você não fez isso, saiba que escrevo para lhe alertar dos perigos da nossa rua. Também lhe peço que me dê pistas para achar quem fez isso. Não, não pretendo envenenar o culpado. Só quero evitar que essa pessoa mate outras vezes. Crianças curiosas podem morrer por isso. O que preciso é ter a segurança de que, dentro da minha casa, ninguém vai jogar veneno pela janela se meu filho fizer muito barulho ao brincar com os amiguinhos dele. Ou vamos precisar de toque de silêncio às 9h da noite, sob pena de nossos cachorros, gatos e filhos amanhecerem cegos, engasgados em saliva e defecando sangue por que fizeram barulho?

Depois de tanto respeitar o espaço dos outros e até aceitar injustiças, depois de exercer o bom senso e ser cortês, depois de ser educado e procurar nunca incomodar ninguém, mataram nossa cadela. Só por isso, só de sacanagem, eu vou ser mais respeitoso, cortês, sensato e educado ainda. Assim como nunca incomodei ninguém, nunca vou incomodar. Não esperem vingança da nossa parte. Seremos quem somos.

Eu não sei quem fez isso. Mas pretendo descobrir. Ontem de manhã, depois de enterrar a Bardot, pedi a uma vizinha as imagens das  câmeras de segurança dela. Espero que ela possa me ajudar com isso. Também conto com as informações que vocês possam ter. Perguntamos aos seguranças da rua, que nos informaram que, durante a madrugada, ninguém se aproximou da nossa casa. Acreditamos, por isso, que o veneno foi jogado durante a manhã de sexta.

Que sirva de alerta: pessoas que matam cachorros, matam pessoas. Quem atira veneno para um cão assume o risco de que uma criança seja envenenada. Viola a casa dos outros, mata um animal, invade a felicidade alheia e traumatiza uma família inteira. Há duas noites venho exercendo a minha criatividade para fazer o Marcos dormir, ao inventar o Céu dos Cachorros, onde agora a Bardot corre sem parar, com aquela linguona saindo pelo lado da boca, trotando feito um potro. No Céu dos Cachorros há um imenso gramado, com árvores de biscoito e potes de ração. Há um lago para os cachorros beberem água, árvores para eles descansarem e gigantescos ossos de brontossauro para eles roerem eternamente.

Ontem o Marcos dormiu chorando de saudade novamente. Eu disse que daqui a muitos anos a gente ia encontrar a Bardot de novo, e ela ia pular na gente novamente. Depois a gente ia levá-la para passear, até ninguém mais aguentar e ele só ficar acariciando as costelas dela, apaixonado por ela, sempre dizendo “eu te adoro, Bardot”.

Ele me perguntou como a gente ia encontrar ela, se o Céu dos Cachorros era só para cachorros.

Eu disse que no Céu dos Cachorros só podem entrar cachorros e seus donos, para matarem a saudade uns dos outros.

Eu disse que o Céu dos Cachorros é assim.

Assassinos não contam como é o Inferno dos Humanos.

Que bom, porque eu não quero saber.

ISMAEL, HELLEN e MARCOS BENIGNO.


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