Falei disso mais cedo, no 4º Café Intercom, uma conversa sobre comportamento e redes sociais havida na Bemol do Manauara. Havia nas ruas de Manaus várias manifestações, e estávamos ali eu, os professores Sérgio Freire e Odenildo Sena, a jornalista Manuella Barros e a psicóloga Simone Russo.
Contei da angústia de ver tanta energia nas ruas, sem saber para onde ela vai. Conversamos sobre a função do jornalismo, o futuro dos jornais, a ‘velha mídia’ do professor Odenildo, os ‘sujeitos hiperlinkados’ do professor Sérgio. Como sempre, faltou tempo. Talvez eu esteja errado, mas precisamos pensar nos formatos que a realidade nos impõe hoje, inclusive para esse tipo de debate. O calor da rua e os smartphones nas mãos dão a todos a vontade insuportável de não mais ouvir palestras ou aulas sobre internet, mas de participar ativamente do debate.
Não à toa as perguntas de ontem eram opiniões. Todo mundo quer falar, dizer o que pensa. Sou um crítico da divinização do meio em detrimento do conteúdo. Acho que discutir as mídias em vez da mensagem é datado, batido, até preguiçoso. E felizmente ontem foi diferente. O bom é quando todos saem com a sensação de que queriam ter falado mais sobre a vida do que sobre como é fascinante o Twitter.
Sobre o que se pode ouvir, todos já sabem mais ou menos. A ordem agora é falar. Nessas ocasiões, sempre digo que meu mundo perfeito seria o do falatório geral no qual todos e cada um seriam potenciais formadores de opinião. Porque, convenhamos, hoje está bem mais fácil formar opinião. Com noções básicas de português e um punhado de senso crítico e interesse pela realidade, qualquer pessoa diz o que quer e é ouvida.
A meninada toma gosto pelo debate. Ontem eu tomava uma caipirinha à espera do horário do evento, e via um juiz conhecido, cercado por quatro ou cinco garotos, tomando cerveja e ensinado aos meninos sobre Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, sobre os protestos, sobre outras gerações de jovens que tentaram mudar o mundo. Eu acredito neles e chego a me emocionar com a guinada política da sociedade, mas insisto na defesa do que mantém este país ainda de pé: as instituições, paridas não por ditadores militares, mas por democratas eleitos pelo povo.
É preciso defender isto, mesmo enquanto o povo ainda continuar fazendo besteira na urna. Acredito na qualidade do meu voto perdido, mas não abro mão do voto vencedor de quem não sabe em quem está votando. Não é a urna o que está errado, é o voto. Não é o Congresso Nacional o que não presta, é quem o ocupa. Quando desprezamos o voto, os partidos e as instituições, damos piscadelas aos que se alimentam de bagunça — e não são os anarquistas, vá por mim.
Como eu disse ontem, tubarões autoritários sentem cheiro de anarquia, adoram a apologia da bagunça, a derrubada de representantes legítimos, o descrédito do Congresso Nacional e o ódio aos partidos. A história nos mostra que o pessoal da farda verde-oliva adora botar ordem na bagunça; quando o povo parte para pedras e paus, sempre aparece um tanque e um fuzil, com o discurso da defesa do povo, para acabar com a selvageria. Essa meninada de hoje precisa ter a consciência do perigo de flertar com a ideia de dar um CTRL+ALT+DEL no país. O Brasil não é uma ditadura que precisa ser derrubada. O Brasil é uma democracia que precisa ser exercida pelo prefixo de sua própria definição: o povo.
Aos que não estão acostumados com o sistema político vigente, quando se fala em “povo”, não se fala na anarquia das ruas. Se fala em voto. Todas as ferramentas democráticas estão à disposição do povo brasileiro, como o voto, a representatividade, a livre filiação partidária, poderes constituídos, liberdade de imprensa, polícia e justiça. Eles não funcionam como deveriam? A receita não é, juro, extingui-los. Foi pela via democrática que, nos últimos dias, políticos democraticamente eleitos pelo povo derrubaram a PEC-37 e os 14º e 15º salários dos congressistas. Se o povo tivesse invadido o Senado e cortado a cabeça de Renan Calheiros, o Exército seria acionado e não saberíamos como isso ia terminar. Foi o Renan, vivinho da Silva, quem falou em passe-livre estudantil, em dar a transparência que o povo exige etc. Eu acredito nas instituições do país. Usadas corretamente e sob intensa vigilância do povo, elas deixam de ser esconderijos e passam a ser o terror dos pilantras.
Se faltam a ditaduras asiáticas e a teocracias árabes todo esse aparato de defesa do povo e de suas liberdades, o Brasil é um povo privilegiado. Quero crer que, com o levante atual das ruas, passe a se interessar mais pelos mecanismos de que dispõe para mudar os rumos do país.
A grande tirania que o Brasil precisa derrubar é a da desesperança.
Quero muito acreditar que esse processo começou.