Na legenda original, “manifestantes entram em confronto com a polícia”. Onde está o confronto em um policial atirando em pessoas com as mãos ao alto?
Revoluções são atalhos perigosos, gambiarras sociais inventadas para resolver problemas estruturais das sociedades em poucos dias. No mais das vezes, acabam criando novos totalitarismos e, se derrubam governos com a “força das ruas”, acabam usando este mesmo poder para reprimir quem for oposição depois. A Primavera Árabe trocou apenas o nome do déspota no Egito, o mesmo ocorre em outros países, que saem da ditadura laica e caem no barco da ditadura religiosa. Quando vejo o nível dos rebeldes sírios, comendo o coração de soldados do criminoso Al Assad, me pergunto: “E quando essa gente derrubar o ditador e assumir?” Quando lembro aquela resposta, faço questão de repetir: não sou contra movimentos revolucionários por suas boas intenções, mas por seus maus resultados. Quem toma o poder à força acaba acreditando que essa mesma força é legítima para lhe manter no poder.
Falei também do ETC 4 em julho do ano passado.
As minhas revoluções são aquelas que, no Brasil, são fragorosos fracassos de público e crítica. Dar-se-iam pelo maciço investimento em educação básica. Em saneamento básico, segurança pública e saúde. Acredito na revolução silenciosa e estrutural, sem volta, da educação. No respeito às leis vigentes, porque elas não foram inventadas por ditadores, mas por democratas. Quando apenas estas coisas ocorrerem, nem novos impostos, nem aumentos abusivos de tarifas passarão imunes às críticas e pressões da sociedade. Quando for a praxe que todos conheçam seus direitos e deveres, nem furões de fila terão mais paz no Brasil. Quando os brasileiros estiverem tranquilos por terem água, médico, comida e esgoto em casa, ficarão mais livres e dispostos a brigar contra abusos de qualquer tipo.
Acredito nas pequenas revoluções pessoais. Lembro que, naquela resposta, falei que minhas revoluções de verdade seriam a união de esforços pessoais em diferentes áreas. Mais blogs apareceriam, mais jornalistas investigariam, mais estudantes escreveriam, mais radialistas, mais escritores, mais articulistas, mais líderes estudantis. Por mim, a revolução real não está na quantidade nem no tamanho da massa, mas na qualidade e na diversidade dos formadores de opinião. Um intelectual, com um texto, pode fazer o serviço de milhares de jovens nas ruas. Quanto mais gente denunciando, falando, contando e mostrando a verdade, menos alvos para os autoritários.
Eu sei que você deve estar bocejando ao ler essas coisas, ouvindo o som da revolução popular lá fora. Lembro o que era ter de ir à Igreja todo domingo de manhã, mesmo ouvindo o som do domingo lá fora… Eu entendo. Entendo mesmo. Há muitos anos a juventude brasileira precisava de uma causa pela qual lutar. Toda uma geração achou nos últimos dias a chance de ter o que contar aos filhos daqui a 20 anos. “Lutei contra a repressão, meu filho!”, dirão orgulhosos. Quis o destino e a ironia da vida que fosse por causa de 20 centavos aumentados na passagem do ônibus, mesmo abaixo da inflação. Ficou claro que o fato determinado era apenas um pretexto. Duvido que ao menos 50 pessoas, dos milhares de manifestantes de São Paulo, conheçam quais as alternativas apresentadas pelo Movimento Passe Livre para que São Paulo chegue ao Nirvana chamado “transporte público gratuito”.
É a revolução pela revolução, contra “isso tudo que está aí”. Acompanhei os preparativos das redes sociais ontem, antes da concentração diante do Teatro Municipal de São Paulo, e vi o clima de “hoje eu vou!”. Fazer parte daquilo era a pedida jovem de ontem em São Paulo. Ninguém sabia muito bem o motivo original dos protestos, mas já não importava. O que importava é que “ninguém aguentava mais”. O quê, exatamente, ninguém mais aguentava? Não vi essas respostas.
Feitas as críticas que faço a estas revoluções “meio sem saber por quê”, faço humildemente minha meia volta e passo a torcer pelo movimento. Não o Passe Livre, porque sigo sem acreditar na quimera do serviço público gratuito – porque serviço público nunca é gratuito. Mas porque enxergo agora que, mesmo com um estopim do tamanho de 20 centavos, a revolta popular ganha dimensões maiores. E o melhor: vai se desvencilhando de qualquer oportunismo político, de bandeiras partidárias, de agendas de esquerda – aquelas que idealizaram a coisa toda.
Como eu poderia ser contra o curto-circuito que os protestos causaram nos blogs progressistas? Ao apelidar Fernando Haddad de Fernando Maldad, os manifestantes tiraram do peito o crachá e viram que a revolta pode ser maior e mais legítima. Se os cartazes atacando Haddad antes eram coisa dos idealizadores do movimento (PCO e PSTU), agora nem esse pessoal mais tem controle algum sobre a multidão. O Paulo Henrique Amorim não sabe mais o que dizer: no desespero, diz que a Globo mostra os protestos para atingir Dilma. Os petistas que conheço estão calados, e ver petistas calados sobre manifestações de rua contra desmandos do poder não tem preço.
Com a meia dúzia de jornalistas feridos ontem, a imprensa, que até anteontem era agente da repressão segundo os manifestantes, passou a ser aliada. Hoje passo a acreditar, não na bobagem da catraca livre, mas porque vejo que o movimento transbordou de si próprio, não é mais o mesmo que nasceu. Acredito porque, desfeita do molde partidário original, a multidão ataca o petismo de Haddad e o tucanato de Alckmin, o primeiro por ser o responsável pelos 20 centavos, o outro por ser o chefe dos policiais que transformaram uma manifestação – esta sim, pacífica – em repressão pura. Quando a própria multidão expurga petismos e tucanices, a coisa fica bonita.
Os fatos e as imagens falaram por si. Certa como estivesse enquanto defendia o patrimônio público e os direitos dos cidadãos paulistanos, a polícia ontem virou a mesa e perdeu o jogo. Atirou a esmo, agrediu, bateu e perseguiu qualquer um. Perdeu todos os créditos das manifestações anteriores, quando as imagens e os relatos provavam que a violência e a depredação ocorriam por autoria de manifestantes. Condenei aqui quem comete vandalismo, condeno agora – ainda mais porque a violência do Estado é mais grave – a ação da Polícia Militar de SP. Até onde vi as manifestações de ontem, não soube de atos de vandalismo cometidos pela multidão. E amigos, se mesmo uma multidão, reunida nas ruas, consegue protestar sem agredir direitos alheios, seu protesto é mais do que bem vindo.
Ainda não soube de agressões dos manifestantes, como a que ocorreu três dias antes, quando um policial foi agredido. Se ficar comprovado que não houve vandalismo, estou com os manifestantes mais ainda. Consigo suportar até a babaquice dos que fazem piadinha sobre a defesa dos direitos individuais e do patrimônio público, como ocorreu ontem. Não estamos em guerra, não estamos em 1968. Justificar depredação de agência bancária porque os bancos são porcos capitalistas que nos roubam é de uma criancice horrível. Por que essas pessoas não fazem como o único comunista praticante conhecido, Pepe Mujica, presidente do Paraguai, que não tem conta bancária nem cartão de crédito?
Ninguém é contra protestos, e eu, aqui neste blog, sempre disse isso, apesar de não ser um ativista praticante. Não acredito em revolução armada, em coquetel molotov; acredito em outro tipo de mudança. Mas enxergo todo o direito legítimo que os outros têm de fazer isso, até eventualmente incomodando o trânsito aqui ou ali. Fiz isso dias atrás, sobre os protestos de médicos (link acima). Por que não faria hoje? Mas sou reacionariamente contra baderna em tempos de democracia. Ontem um beócio destes, na internet, fez uma montagem sugerindo que defensores da ordem seriam partidários de Stalin ou do comunismo chinês, como se Stalin ou Tse Tung não fossem pensadores de esquerda. A estátua de Stalin era o símbolo do autoritarismo e do genocídio, não um patrimônio público. Uma estação de metrô é. Um prédio do Tribunal de Justiça é. Os milhares de reais que serão necessários para fazer os reparos sairão de onde, senão do bolso de todo mundo, inclusive dos que estavam somente querendo chegar em casa, depois de um dia de trabalho?
Mas retomo minha boa vontade. Outro dia vi, novamente, um dos meus filmes prediletos, “Coração Valente”, e brinquei com a Hellen lá em casa, dizendo que todas as guerras da história devem ter tido, direta ou indiretamente, uma mulher por trás. A guerra que William Wallace e seus amigos camponeses começam, supostamente por causa do assassinato de sua esposa por soldados de Eduardo I – há controvérsias quanto a isso – acaba na independência da Escócia. Tomando emprestado o argumento romântico do filme de Mel Gibson, é de se notar que a independência de um país começou com uma vingança pessoal. Quando Wallace reúne atrás de si uma multidão na Batalha da Ponte Stirling, formada por diversos clãs de diferentes vilarejos, fica claro que não importa mais o que deu início à guerra.
Me cumpre lembrar que não tomo parte nessas revoluções. Acredito que tenho mais jeito para combater desmandos e autoritarismos com um texto do que com uma pedra. No fim das contas, toda forma de protestar é válida, dentro das leis. É uma pena que os mascarados das ruas prefiram criticar a posição – sentada – de quem escreve textos de protesto. Só muda a posição, o estilo e a repressão. Se nas ruas se protesta correndo e gritando das balas de borracha e do gás, na escrita se luta expondo a verdade e eventualmente aguentando a perseguição pessoal e os processos nas costas.
Sou avesso ao vandalismo das ruas, como sou avesso ao anonimato na internet. Assim, sou um militante da legalidade e da cara limpa, defendo minhas posições e assino o que digo. Se cobro isso de outros que protestam, não é por discordar do protesto, mas por querer que cada manifestante exiba seu rosto e seu nome. Só há uma forma de os protestos em São Paulo ficarem ainda mais bonitos: quando as últimas máscaras e capuzes forem aposentados. É preciso mostrar que não há mais donos de nada, e sim milhares de nomes e rostos únicos. É o que eu sempre defendi, a individualidade em vez da massa. Porque a massa não tem rosto, se sumir não fará falta. Indivíduos com nome e rosto fazem.
Sim, há milhões de motivos para o brasileiro se revoltar, diariamente. São tantos que é injusto dar a qualquer manifestação as letras de um partido ou de uma ONG. Se o país quer aproveitar os vinte centavos da tarifa de ônibus para cobrar mudanças em outros temas, muito bem, apesar de eu achar que revolta sem objetivo acaba só num cigarrinho no final da rua. Tenho uma série de pautas que posso sugerir aos mascarados da Paulista. Comecem cobrando o cumprimento da Lei da Transparência. Depois montem equipes de investigação para descobrir esquemas de corrupção do Judiciário, e então enviem as provas ao Ministério Público – antes que o MP seja algemado pela PEC 37.
Montem equipes de jornalistas, investiguem o financiamento ilegal de campanhas através das concessões de transporte coletivo. Fiscalizem a aplicação o Bolsa Família, levantem o percentual de fraudes no programa. Cobrem investimento em escola, deem prazos para isso. Façam manifestações – pacíficas! – diante do palácio do governo e da Prefeitura, dia sim dia não, até que surja uma garantia de que X bilhões serão investidos, até o ano Y, em educação básica e em saúde. Cobrem a demissão do vice-governador, que é governo e oposição ao mesmo tempo. Cobrem o paradeiro do médico Abdelmassih, que parece que continua foragido, depois de condenado por diversos estupros. Cobrem a devolução do dinheiro que dizem que o Maluf roubou, façam piquete em frente à casa dele toda semana. Façam marchas contra os desmandos da Copa, cobrem as promessas de mobilidade urbana, cobrem o cumprimento do PAC e as promessas do Alckmin.
Enfim, aproveitem que o movimento transbordou. Sem quebradeira, sem molecagem, aproveitem que a guerra não é mais por causa de uma vingança pessoal nem foi por causa de duas moedas de 10 centavos – porque convenhamos, nunca foi. Se hoje sou criticado por condenar qualquer violência, é porque quem critica não enxerga que, agora, os protestos de certa forma me dão razão. Sim, soa pretensioso, mas não é por pouca coisa. Quem me conhece sabe que sou um defensor intransigente da individualidade, do rosto à mostra, de quem assina o que diz, de quem exerce sua liberdade de dizer o que pensa. Se os protestos mascarados e violentos do início deram lugar ao rosto exposto e ao pacifismo de agora, não sou eu que me junto à multidão, mas é a multidão que se junta ao que eu defendo há 10 anos, aqui mesmo neste blog.
Eu não faço parte das revoluções de rua, minha crença é em outro tipo de revolução. A revolução da escola, do sofá, dos debates, dos livros, dos seminários, dos artigos e dos posts de internet. Sim, meus jovens, é possível mudar o país sentado, revejam seus conceitos e nos falamos novamente daqui a 20 anos.
Mas Coração Valente continua sendo um dos meus filmes preferidos.
PS – Não hesitarei em voltar a chamar de vândalos quem faz vandalismo, sob que pretexto for. Não tenho lado cativo, e este é o meu argumento no longo texto acima. A satisfação de ver que, ao menos uma vez, alguma coisa ocorre no país sem o lado da esquerda nem o da direita, mas ao que tudo indica do lado da sociedade mesmo. É ela a dona de tudo.