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Channel: O Malfazejo
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O alto preço das coisas grátis

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Era o aniversário da Hellen. Ainda de manhã, eu ponderei: “Amor, nós queremos muito ir, mas é um estresse muito grande para terminar em frustração, justo no seu aniversário”. Mas ela queria, eu queria, então fomos. Correndo, estacionando longe. O Marquinhos foi com a gente, queríamos mostrar a ele duas coisas: músicas do Queen e o Teatro Amazonas.

Logo depois o Jan Rinaldo ligou, estava por ali com a Anália e a Isabela, filha deles. Viram a fila e desistiram, foram passear na praça. Ele viu a fila, a nossa posição e disse “Acho que vocês entram, sim”.

Mas coração de brasileiro não se engana, não é? Eu não conseguia ficar tranquilo, e a sensação só piorou quando fui com o Marcos à lanchonete do teatro comprar água. Aquele local virou quase uma entrada alternativa do evento. Era um túnel para fuga de presidiários ao contrário, uma entrada VIP.

Não foi a primeira vez. No dia 8 de maio, o mesmo concerto foi apresentado no Teatro da Instalação, lá na ZBM. Chegamos duas horas antes, vimos a fila triplicar de tamanho lá na frente, ficamos sem senha e não entramos. Naquela noite, um representante da Secretaria de Cultura (SEC) nos tranquilizou: “No fim do mês vamos refazer o show no Teatro Amazonas, que é muito maior”.

Foi ontem. E nós ficamos de fora novamente. Não porque o teatro fosse pequeno, não porque chegamos tarde, não porque a organização errou. Mas simples, clara e definitivamente porque somos um país de filhos da puta.

Não há miniatura mais perfeita do Brasil, em escala 1:10000, do que uma boa fila de show musical. Porque ali você vê, compreende, experimenta, observa, submete a testes e análises o comportamento de pessoas comuns diante do direito alheio, do seu próprio direito. Numa fila do pão, do Bolsa Família ou do posto de saúde há mais variáveis envolvidas, necessidades básicas que afrouxam mesmo os limites de muita gente. Não é, portanto, o  melhor tipo de fila para estudar a avacalhação brasileira. A fila do show musical é.

Está tudo ali. Diante do olhar passivo do contribuinte, que está ocupado demais com sua vida, grupos de corruptos roubam dinheiro público à luz do dia. A gente vê aquela gente ligando para os amigos, dizendo “Corre, a gente tá perto da escadaria da Eduardo Ribeiro!” e lembra de tudo isso. Casais estacionam o carro, atravessam a rua, se aproximam dos amigos, dão os respectivos beijinhos, apertos de mão e ficam. Não há nem mais o pudor de chegar à francesa, quietinho, como quem não quer nada. A impressão é a de que dali a pouco vão abrir uma mesa, estourar um champanhe e ligar o som do carro bem alto pra completar a festa. Atrás deles, a classe média, na fila, comportadíssima. Afinal, fazer escândalo é feio, reclamar é brega, criticar é sinal de infelicidade. É nessa mistura de pilantras e simples otários que casais se beijam, batem papo, riem, falam ao telefone. A vida vai seguindo, as horas vão passando, mais pilantras vão chegando, roubando e comprando pipoca.

Um grupo à minha frente, de gente que eu já conhecia da internet, vai quase fundando aos poucos um país só deles, de tanta gente que chega. É a necessidade de reproduzir, à custa do direito alheio, aquelas fotos bonitas do churrasco em casa – tem de estar todo mundo junto, pra serem felizes e lembrarem disso com saudade um dia! Aí vão ligando e chamando, ligando e chamando…

Me aproximei de um grupo desses, bati no ombro de um deles e perguntei: “E aí, tudo bem com vocês? Tá confortável, a gente lá atrás pode fazer algo mais? Uma cervejinha, uma massagem, quem sabe…” E a reação envergonhada e, claro, silenciosa, respondia à minha provocação. Nos flagrantes do Fantástico ou na falta de paciência de algum cidadão na rua, o mandamento fundamental do malandro é ficar surdo, cego e mudo. Fingir que não é com ele. Outra lembrança do Brasil maior é aquela expressão de “Cara, para com isso, tudo funciona assim, deixa de cena…”

Um garoto logo atrás de mim telefona para os amigos: “Vem logo, tá tranquilo!”. Minutos depois, três outros jovens chegam, todos se cumprimentam e… a mulher atrás deles perde a paciência: “Ei, na minha frente vocês não vão furar! Vou chamar a organização e mandar vocês saírem!”. Um dos garotos responde: “Foda-se!”. O anfitrião, de 16 ou 17 anos, que na minha metáfora é o funcionário da comissão de licitação que mandou a carta-convite aos três amigos, emenda: “Todo mundo fura, vão frescar agora por quê?!” Eu me viro e digo “Olha para a sua idade, garoto… Pare de falar assim…” Ele está muito puto com o amigo grandão, que admitiu que tinha furado a fila e batia boca com a senhora que reclamava seu direito. “Caga, mermão! Ficar falando que furou fila… porra, cara!”, reclamava. Outro traço do Brasil brasileiro, um adolescente que já sabe: não se confessa essas coisas por aí, o certo é baixar a cabeça, negar peremptoriamente e reservar-se ao direito de ficar em silêncio.

Quando todos entram e não há mais lugar para ninguém, a organização chama um guarda e dois policiais – por precaução – fecha a porta do Teatro Amazonas e vai embora. Lá dentro, o saguão fica vazio e, para que a cena não fique tão grotesca, a porta de acesso à plateia é fechada. Eu olho pela vidraça e, pelo vitral superior das imensas portas, vejo o clarão lá dentro. O concerto começou. Me aproximo mais da vidraça, parece que há um telão, algum filme é projetado no começo do show. Olho para trás e a minha aniversariante é a expressão da frustração e da revolta. “A gente não vai mais entrar no teatro, pai?”, me pergunta o Marcos.

Uma mulher visivelmente transtornada começa a gritar na fila. Diz que somos todos feitos de palhaços e é aplaudida. Não sei direito o que mais ela grita, mas percebo que, para acalmá-la, a organização propõe que ela, e somente ela, entre. Acredito que empolgada com seu próprio discurso, grita para a fila: “Querem me botar para dentro por causa do meu escândalo! Mas eu não tenho esse direito, vou prejudicar outras pessoas! Eles não têm ética, mas eu tenho!” Mais aplausos. Um casal que furou a fila vinte pessoas à minha frente é dos mais revoltados. O homem ensina a um funcionário da SEC: “Acho que nos próximos eventos, vocês precisam se organizar melhor!” É a revolta do furão que não entrou.

Às 20h33 eu faço as últimas checagens: olho novamente pelo vidro, forço a vista para tentar entender o que é projetado lá dentro; tento ouvir qual das músicas do Queen estão tocando. Confirmo com o guarda que a porta foi trancada; as luzes do hall de entrada estão apagadas. O recado é claro: vamos para casa.

No carro, o Marcos começa a chorar, mesmo sem saber o que perdeu. Mas sabe, depois de três horas em pé numa fila, que a nossa noite não merecia terminar daquele jeito.

Senti vergonha. Pensei que podia ter dado algo de valor, programado algo mais caro para o aniversário dela. Um show gratuito, dado pelo governo, não era exatamente um símbolo romântico ou uma prova da importância que ela tem. Mas algo nos empurrou para ali. A gente só queria ver o show. Só isso. Não dá pra ser mais simples do que isso: a gente só queria ver o show.

Acordei hoje pensando no que houve, imaginando como deve ser legal aquele concerto. Concordando com a Hellen: já que somos como somos, nunca vamos conseguir assistir esse show. É como se alguém chegasse com você e dissesse “Olha, enquanto vocês tentarem entrar na faculdade de medicina estudando, vão ficar de fora. Para entrar tem que ter alguma peixada”. Alguém consegue conceber uma ideia dessas como algo natural? Porque tudo bem, a gente vê às vezes dois ou três garotos sendo presos, tentando fraudar o vestibular. Esquemas desse tipo acabam na televisão, viram escândalo porque são a exceção, e não a regra. Quando tudo é invertido e somente fraudadores conseguem passar no vestibular, danou-se. A comparação é esdrúxula pela gravidade, mas perfeita pela capacidade de ilustrar o caráter nacional. E neste quesito, amigos, uma fila de show musical diz mais sobre o Brasil do que qualquer tese de doutorado. Numa fila de show musical gratuito, quem não fura não entra.

Trouxe para casa, além de uma mulher indignada e um filho exausto, a comprovação das minhas teses pessoais. Uma delas, a de que precisamos descobrir o que é viver sem a tutela do governo até para dançar mambo. Um show que podia ser perfeitamente produzido pela iniciativa privada, com patrocinadores, ingressos, uma temporada de um ou dois meses, precisava mesmo ser erguido com dinheiro público, obrigando a organização a oferecê-lo de graça a 700 pessoas que poderiam perfeitamente pagar por ele? Ora, produzir um espetáculo que todos querem ver, reservar 700 lugares para a cidade inteira e deixar que o próprio povo decida quem vai vê-lo é entregar a sociedade à barbárie. Se dar liberdade a certo tipo de sociedade é condená-la à morte, deixar que brasileiros respeitem uma fila é de um sadismo horrível.

Se temos a demanda por shows de qualidade – e sobre este o que me resta é morrer imaginando – e artistas capazes de oferecer o produto; se temos empresas interessadas no marketing, se temos teatros públicos, lindos e ociosos, que passam a maior parte do ano fechados, por que tudo precisa ter a mão do governo? E, já que é aberto ao público, por que fazer algo que no fim acaba reservado a menos de mil pessoas, muitas delas da própria organização do espetáculo, parentes, amigos e amigos dos amigos? Se é para ser acessível a todos, por que apenas duas apresentações? Se todos sabem que a distribuição de senhas é mais justa, por que humilhar tanta gente numa fila que ninguém vai respeitar?

Vasculhei as redes sociais atrás dos depoimentos dos felizardos que viram o concerto. Procurei fotos, quem sabe vídeos. Até agora, não achei nada. Me perdoem aqueles que chegaram cedo e entraram porque mereceram, mas para mim essa falta de imagens é o retrato de um espetáculo que infelizmente foi estragado pela injustiça. Para os que entraram depois de roubar o lugar dos outros, fica a lembrança de um show que não vão comentar muito. Para quem teve seu direito roubado – duas vezes! – fica a certeza de que, em Manaus, show de graça é pérola jogada aos porcos. É nessas horas que compreendo por que shows pagos são tão caros aqui. É o preço de civilizar certo tipo de gente.

Sou um admirador da voz do Humberto Sobrinho. Já fui ao Rio para vê-lo se apresentar com a Glory Opera, quando abriram um show do Nightwish. Pelo que já o vi fazer, me resta imaginar o que fez com as músicas do Queen. Deve ter sido muito bonito.

É uma pena que, depois de tentar vê-lo duas vezes, depois de esperar por três horas na fila no dia do aniversário da Hellen, eu tenha ficado com apenas um clarão, visto por trás da vidraça, onde imagino que havia um telão projetando imagens do Freddy Mercury.

Foi o que nos restou. A pintura perfeita do microcosmo brasileiro numa fila de mil pessoas. A tristeza de ver um show musical transformado em vergonha e a decepção com algumas pessoas.

Não, não foi o governo, a SEC, a organização nem os músicos os que fizeram tudo isso conosco. Discordo plenamente dos que, diante da notícia de que ficaram de fora, decidiram gritar e cobrar seus direitos das “autoridades”. Foram as mesmas pessoas que passaram duas, três horas assistindo aquilo tudo sem reclamar, com vergonha de fazer escândalo.

Para mim, e esta é a cereja do bolo da minha metáfora improvável, a revolta daquela gente é inútil. Cheguei a dizer aos revoltados tardios, como sempre disse por aqui àqueles que atribuem a bandalheira aos governantes: “Bem feito para vocês, que passaram a noite sendo roubados e ficaram calados!” É o mesmo que digo a quem vota em ladrão e depois reclama da corrupção: “Não quero ouvir um pio!”

Chegamos antes das 18h. Queríamos mostrar duas coisas ao Marcos: músicas do Queen e como era o Teatro Amazonas por dentro. A única coisa que conseguimos mostrar a ele foi uma maquete cultural do Brasil e um tratado sobre nossa raça. Ficou de bom tamanho. Ele terminou a noite tomando um baita milk-shake de chocolate com a amiga dele, a “Bebela”.

Um milk-shake pago, é importante dizer. Não quero iludir o Marcos fazendo-o acreditar que o respeito resiste à gratuidade das coisas.

No Brasil, coisas com preço são o que nos separa das trevas.

PS – Se cabe uma nota à margem, registro que perdi, mais uma vez, um show da banda Pacato Plutão, do querido Marcelo Seráfico, também ontem à noite. Agora eu já sei, professor Marcelo: entre Freddy Mercúrio e Pacato Plutão, a partir de agora sempre vou escolher Plutão!


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