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Por que sou contra a arena

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Obra de Peter Bruegel, no século XVI. A realidade medieval e os costumes sociais na Europa.

Obra de Peter Bruegel, no século XVI. A realidade medieval e os costumes sociais na Europa.

Ontem o professor Sérgio Freire foi às redes sociais e disse, sem firulas nem porquês: “Remando contra a maré, sou a favor da construção da Arena Amazônia”. O professor tem razão: na internet, quem fala a respeito é contra. Funciona assim: a construção da arena é quase uma unanimidade entre os amazonenses, mas há esse povinho “reclamão” da internet no qual eu orgulhosamente me incluo. Outra hora eu comento essa utilidade pública chamada “ativismo de sofá”, mas o ponto agora é outro.

Não sei se posso contribuir com alguma novidade no debate. Já falei sobre o tema várias vezes e deixei claro, como o professor, qual a minha posição. Só vi gente boa, a começar pelo Sérgio, comentando o assunto. Foi o que me encorajou a repetir a minha posição contrária à obra. E tanto ela é voto vencido que está aí, para o mundo ver, a Arena Amazônia, à vista de todos. Eu fiz como a Carolina Coelho, que havia prometido parar de se meter na felicidade do povo, mas não é fácil. Fui checar as novidades sobre o tema, a entrevista do Aldo Rebelo, os números oficiais, as polêmicas políticas etc. E o que posso dizer é que sou ainda mais contra a construção da arena. E sinto dizer que os argumentos contrários pesaram bastante para eu firmar posição.

Eu também vi a entrevista do Aldo Rebelo ao Roda Viva por esses dias. Para defender a copa brasileira e rebater o fato de que teremos pelo menos cinco elefantes brancos depois dela, o ministro citou até o estádio de Wembley, em Londres, que hoje sedia poucos jogos de futebol. Segundo o ministro, Wembley sedia casamentos, feiras, bares etc. Aldo devia estar com muitos números na cabeça, óbvio, pois esqueceu de dizer que Londres já tem água tratada, educação e metrô – aliás, um dos melhores e mais antigos do mundo. Portanto, um estádio pouco utilizado (e Wembley dá prejuízo hoje) não agride a honra de ingleses sem hospitais, sem água, sem mobilidade. Mas vamos a alguns dados: Reinaugurado em 2007, o Wembley Stadium não deu mais do que prejuízos, um ano depois. O estádio, construído inicialmente em 1927, foi demolido em 2002, para que outro pudesse ser erguido em seu lugar. A nova arena custou 800 milhões de euros (cerca de R$ 2 bilhões), dos quais 346 milhões (aproximadamente R$ 900 milhões) foram providos por empréstimos. Somados os juros do pagamento, o prejuízo do primeiro ano de funcionamento do “novo” Wembley chega a 40 milhões (R$ 104 milhões).

Wembley dá prejuízo para os ingleses, mas os trens estão ali! E as ruas asfaltadas também! E as BMWs também!

Wembley dá prejuízo para os ingleses, mas os trens estão ali! E as ruas asfaltadas também! E as BMWs também!

Pois é. Atualmente, o Wembley possui capacidade para 90 mil lugares e pode receber jogos de futebol, rúgbi e atletismo, além de shows e grandes eventos, como o festival Live Earth, que aconteceu em 2007. Aldo e seus companheiros de opinião dizem que Manaus não precisa ter futebol para sediar copa. Sim, técnica e legalmente não. Manaus não tem futebol, tampouco rúgbi ou atletismo. Manaus também não tem festival como o Live Earth. E eu me apego ao discurso dos felizes quando digo que já estou montando uma lista dos megashows que quero ver na nossa arena a partir de 2014. O ministro diz que estamos construindo um dos melhores estádios do mundo, então posso sonhar com U2, Coldplay, Madonna, AC/DC e Pearl Jam, não?

A ruazinha que passa atrás do estádio de Wembley. Ou melhor: o estádiozão que passa atrás das ruas de Londres.

A ruazinha que passa atrás do estádio de Wembley. Ou melhor: o estádiozão que passa atrás das ruas de Londres.

Mas este também não é o ponto. Nem os restaurantes, nem os bares, nem os shows e nem os jogos esporádicos da seleção inglesa foram capazes de pagar o custo do Wembley. Na África do Sul, as autoridades já pensam em demolir o mais belo estádio do mundo, erguido para a Copa de 2010 e palco de show exatamente do U2, do Coldplay e do Red Hot Chilli Peppers. Ocorre que o estádio custa 13 milhões de reais por ano, só para continuar existindo. Colo aqui um trecho de reportagem da revista Veja no mês passado:

O estádio da Cidade do Cabo não é o único caso de desperdício de dinheiro entre as arenas erguidas na África do Sul para o Mundial de 2010. Ele é, porém, o exemplo mais preocupante a ser analisado por um país como o Brasil, que se prepara para realizar uma Copa em que pelo menos quatro cidades-sede não têm perspectivas claras de receita para sustentar suas arenas depois do torneio. Já era esperado que estádios erguidos ou reformados em cidades menores, como Nelspruit, Port Elizabeth e Polokwane, fossem pouco aproveitados após 2010. Com populações pequenas e pouca atividade esportiva profissional, essas localidades já esperavam ter seus próprios elefantes brancos quando a Copa terminasse. Quando se trata da Cidade do Cabo, porém, fica claro que as trapalhadas das autoridades sul-africanas foram responsáveis pelo fiasco, já que a cidade é grande, rica, relevante e costuma receber um grande fluxo de visitantes durante quase o ano inteiro. Um projeto bem realizado poderia viabilizar um futuro rentável para a nova arena. Os sul-africanos, no entanto, caíram no mesmo erro que muitos dos estádios da Copa de 2014 estão cometendo: construir uma arena moderna pensando apenas no curto período em que a competição é disputada, e não pensar desde já em como mantê-la útil e lucrativa depois do Mundial. Desde a semifinal entre Uruguai e Holanda, a última partida da Copa a ser disputada na Cidade do Cabo, diversas soluções foram cogitadas para tentar resolver o problema do estádio. Falou-se, por exemplo, em simplesmente demolir a arena, numa tentativa desesperada de conter a sangria de dinheiro provocada pela necessidade de conservar o local. Um sindicato chegou a defender a transformação do estádio num grande complexo de moradias populares, já que a Cidade do Cabo é uma das cidades de maior desigualdade social do planeta, com mansões de frente para o mar separadas por poucos quilômetros de barracos de zinco. Por enquanto, tudo segue como está.

Todo o texto na VEJA (de 4 de março passado) é o molde do prejuízo previsto para o Brasil – troque os nomes das cidades e será tudo igual. Convém aqui esclarecer: não sou contra apenas a copa em Manaus, sou contra a copa no Brasil, em que pesem todos os argumentos históricos de que somos o país do futebol, fomos a todas as copas e blábláblá. Isso é conversa para elefante branco dormir; não estamos falando de troféu de país mais alegre ou de uma estrelinha a mais no uniforme dos jogadores. Estamos falando de bilhões e bilhões de reais jogados no lixo, desviados por corruptos e que vão ficar mais caros à medida que o tempo passar. O Brasil, como a África, vai passar décadas pagando esta conta. Wembley também dá prejuízo, mas os ingleses aguentam o baque.

Eis o ponto. Nossos governantes brasileiros nos convenceram (eu sempre me incluo nessas frases apenas por educação) de que era necessária uma copa ou uma olimpíada para que pudéssemos investir em transporte público. A vinda de vinte e dois rapazes, para correr atrás de uma bola durante uma hora e meia, era uma “chance histórica” para Manaus finalmente modernizar seus sistemas de mobilidade, abastecimento de água, sua oferta de energia elétrica, sua rede de comunicação de tevê e internet. Todo mundo esqueceu isso ou só o “reclamão” aqui é quem lembra?

Este é o problema: pelo discurso oficial de quatro anos atrás, era possível entender que Manaus estava condenada à danação eterna e foi salva pela Fifa. Sem a Copa, ficaríamos eternamente do jeito que estávamos em 2009 – sem esgoto, sem internet boa, rápida e democrática, sem sistemas modernos de transporte público de massa e sem ruas novas. Resumindo: dizer que o futebol seria o responsável pelo progresso de Manaus era como se o presidente dos esquimós da Islândia aparecesse e dissesse: “Vamos, gente, construir uma praia de nudismo para o próximo campeonato mundial de nudismo! É nossa única chance de sair do lugar!” Todos nós, além do Aldo Rebelo, sabemos que nudismo não é o forte dos esquimós. Nem futebol é o nosso.

Portanto, não sou contra a arena porque não temos futebol. Sou contra a arena porque ela é prejuízo garantido, vai ser subutilizada, apropriada pelos empresários amigos do poder e virar uma ponte, uma arena dos povos da Amazônia, um Sambódromo, uma arena Amadeu Teixeira. Sobre esta última, não cabe olhar para aquilo e ver um paralelo em escala menor do que aguarda a Arena Amazônia? Quantos shows do Roberto Carlos serão necessários para pagar o custo da arena? Quantos feirões de carros seminovos? Quantos Blocos das Piranhas? Quantos shows da Cinara Nery? Quantos peladões serão necessários para custear um troço de 1 bilhão de reais?

Saneamento

Também sou contra a arena por causa do cocô. Acho que os Estatutos do Homem, aquela obra-prima do poeta amazonense Thiago de Mello, devia começar assim:

“Artigo 1 – Fica decretado que agora de mãos dadas marcharemos todos para proibir, sem choro ou ranger de dentes, que não vamos construir nada, absolutamente nada enquanto houver um homem, uma mulher ou um só menino fazendo cocô na rua.”

Não é simples? Estamos aqui há três séculos e meio. É realmente muita chatice cobrar que todo mundo tenha uma privada em casa? Ou uma torneira de onde pingue… água?

Em 3750 a. C., já havia coletores de esgoto na Babilônia, o atual Iraque. As ruínas da foto são do aqueduto de Jerwan. 300 anos antes de Jesus Cristo nascer, Roma tinha 300 banhos públicos. Em 50 Antes de Cristo o arquiteto Vitrúvio já falava sobre a importância de se estudar os níveis de salubridade para escolher o melhor local para a construção de prédios e cidades. Até a civilização quíchua, no século 13, construiu, entre o Peru e o Equador, cidades que tinham suprimento de água e drenagem de esgoto. Em 1668 (século 17!), foi tornado obrigatório que todas as casas de Paris tivessem banheiro. A rede de esgotos parisiense, aliás, foi construída a partir de 1854 e hoje tem 2,3 quilômetros. Em 1889, todas as grandes cidades dos EUA já possuíam linhas de coleta de esgoto. No Brasil, São Paulo passou a ter água encanada e tratada em 1877; o Rio de Janeiro em 1861 e o Rio Grande do Sul em 1876! Pelo MEU artigo 1 dos Estatutos do Homem, SP, RJ e RS já poderiam sediar jogos de Copa do Mundo no século retrasado! Manaus, NÃO!

Ainda bem que eu não escrevi os Estatutos, não? Eu certamente não seria famoso como o Thiago, nem meus versos emocionariam pessoas do mundo inteiro. Bom, se isso me ajudasse a ver menos crianças com barriga d’água ou diarreia, caminhando nuas no esgoto e sem ter escola nem remédio, eu já ficaria feliz.

Falo apenas de saneamento básico, nem toco no estado das principais avenidas, na oferta de energia elétrica, na distribuição de água e no transporte público, outras calamidades nas quais nossos números são grotescos. Em 2008, o IBGE disse que ¼ da água distribuída na região norte não tem qualquer tratamento – a média nacional é de 7%. Metade da água produzida é perdida em vazamentos. Só 3,5% das cidades da região Norte tem rede de esgoto. 89% das cidades resolvem a coleta de lixo com “lixões” a céu aberto.

Orçamento

Mas vamos a outro argumento, o da divisão de orçamentos. No Facebook, a crítica ao mal uso do dinheiro público foi chamada de “falácia”, porque os reclamões estariam sendo ignorantes e generalistas. Não, ninguém imagina que foi tirado dinheiro dos livros das crianças para comprar ferro para a arena. Não, ninguém disse que os tubos do esgoto foram desviados e viraram assento de estádio de futebol. Levar o debate para a chicana técnica é tergiversar. O problema de construir um estádio moderníssimo encravado no meio de invasões e favelas não é o desvio de orçamentos, mas o desvio da vontade política. Há um orçamento para esportes e outro para infraestrutura? Há um dinheiro para o turismo e outro para a educação? Claro que sim! Não peço que se mexa em verbas carimbadas, como se isso fosse possível. O que questiono é por que, por que nossos governantes são capazes de tudo para cumprir as exigências de uma empresa – a FIFA – e não fazem a milésima parte do mesmo esforço para acabar com a pouca vergonha do esgoto a céu aberto em Manaus.

Ora, por que para construir campos de futebol vale até criar novas leis, mudar o curso do tempo, dar nó em pingo d’água e assobiar e chupar cana ao mesmo tempo? Para aprovar empréstimos no BNDES para os estádios os governos estaduais fizeram verdadeiros milagres. Por que não podem fazer o mesmo para outras áreas? Como pode ser impossível instalar canos debaixo das ruas, mas é possível fincar 1 bilhão em concreto armado no leito do Rio Negro? Até hoje o grande legado da ponte Rio Negro foram belas fotos do pôr-do-sol. Cadê o “escoamento da produção do interior”? A explosão do desenvolvimento industrial e econômico de Iranduba e Manacapuru?

É a nova mania nacional brasileira: fazer justiça social com o dinheiro do injustiçado. Agora progride o discurso de que espalhar os jogos da copa por 12 sedes, em todas as regiões do país, era uma forma genial de reparar injustiças. O ministro Aldo quase compôs uma ópera para defender o direito de Manaus de ter um estádio. Manaus foi esquecida, é distante, sofre preconceitos… então vamos botar lá não uma estrada que a ligue ao país, nem uma rede de portos que a ligue ao interior. Não, vamos botar um campo de futebol, emprestar para eles 1 bilhão e depois eles arrumem o que fazer com aquilo! O mesmo com Cuiabá, Natal, Brasília. Todo mundo ganhou uma Ferrari, programada na fábrica para rodar apenas quatro vezes. Serão quatro “rolés” estilosos, preciso admitir, mas depois, amigos, é só manutenção e IPVA. Justiça histórica não é botar um estádio no colo do pobre, é botar um mega-hospital de câncer, instalar 10 creches federais (Dilma prometeu seis mil, não foi?) nas periferias de cada sub-sede, instalar mamógrafos em todos os municípios, implantar programas federais de aceleração da alfabetização nas regiões mais pobres e distantes. O argumento de que há orçamentos para cada coisa cai por terra quando falamos em BNDES. O dinheiro do BNDES está lá, sem carimbo algum, esperando para ser usado no que presta. Vamos proibir que seja usado para construir campo de futebol? Claro que não, vamos apenas começar a liberar dinheiro para isso depois que todo mundo estiver com água potável em casa, com luz em casa, com casa, com merenda escolar, com creche!

Eu sou contra a construção da Arena Amazônia porque ela não é a primeira prova de que as mega construções de nossos estadistas são fúteis, mal planejadas e ociosas. Só os maiores exemplos (Arena dos Povos da Amazônia, Arena Amadeu Teixeira, Ponte Rio Negro e Sambódromo) me bastariam, mas Manaus precisava ir além na sua capacidade de esculhambar a vida de seu povo.

Quem nos esculhamba não é o Mauro César da ESPN, por ser paulista, torcer pro Racing da Argentina e ser contra desperdício de dinheiro público. Quem nos esculhamba não sou eu, que sou contra a Arena e contra o desperdício de dinheiro público e oportunidades. Quem nos esculhamba somos nós, que sabemos o que vai acontecer, mas teimamos em demonizar quem fala a verdade.

Tudo é muito relativo no nosso reino encantado, entendo. Mas para mim há coisas absolutas, cristalinas, claras e óbvias. Eu não sou contra a arena porque ela é feia ou bonita. Nem porque custará um bilhão. Se fosse magnífica, de lá brotassem três arco-íris dourados, cheirasse a jasmim e custasse 10 mil reais ainda seria cara. Eu acho mais grave uma pessoa fazendo cocô pela janela do que um boi com febre aftosa. O boi contaminado, contudo, é capaz de derrubar nossa economia no comércio exterior. Acho que poderíamos copiar este cuidado com a carne que exportamos no quesito do saneamento. Abrir uma luta nacional e patriótica para erradicar o cocô da janela.

Enquanto houver alguém fazendo cocô da janela de casa, aceito até ficar sem os shows do U2, do Coldplay e da Cinara Nery. Não é porque sou contra a arena. É porque, para mim, absolutamente qualquer outra coisa, até educação, cultura ou esporte é supérflua quando tem gente fazendo cocô da janela de casa.


Aliás, sobre este pequeno traço de nossa sociedade de 2013, cumpre explicar a ilustração do início deste texto. É uma pintura (“Os provérbios holandeses”) do renascentista Peter Bruegel que retratava os absurdos humanos em forma de… provérbios — que eram populares naquela época. Bruegel pintou alguns desses provérbios neste óleo, cheio de referências a temas que ainda hoje podem ser aproveitados. Um deles é o da imagem que pesco abaixo, o que dizia “os dois defecam pelo mesmo buraco”, numa alusão a pessoas que concordam entre si. Não é, claro, um retrato de uma sociedade, mas ilustra bem cenas grotescas que poderiam ocorrer na Europa do século XVI. A cena abaixo é um adágio popular de 1559, mas lhe lembra alguma coisa do Amazonas de 2013?

Os dois defecam pelo mesmo buraco. Podia ser uma referência à concordância entre dois homens, mas era apenas a referência entre duas realidades: a europa medieval e o Amazonas contemporâneo.

Os dois defecam pelo mesmo buraco. Podia ser uma referência à concordância entre dois homens, mas era apenas a referência entre duas realidades: a europa medieval e o Amazonas contemporâneo.


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