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Channel: O Malfazejo
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Feios na foto

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Foto: Marcello Casal Jr. / Agência Brasil
Foto: Marcello Casal Jr. / Agência BrasilN

Yoani Sánchez foi a protagonista de um roteiro que não é seu. Era somente a atriz involuntária de uma guerra ideológica que vai muito além do que alcançam seus longos cabelos. Desfilou primeiro entre repórteres e militantes de esquerda, estes aparentemente recrutados pela reportagem da revista VEJA, tal foi a semelhança entre a profecia e os fatos. E ali, enquanto sorria ao lado dos dólares falsos, das faixas acusatórias e dos berros, começava a virar a personagem da semana.

A estratégia das ‘esquerdas’ era tão – pra ser bem fiel aos fatos – babaca que, numa tacada só, os manifestantes fizeram o Brasil se perguntar quem era a blogueira e levantaram o moral de tucanos e democratas, além de Bolsonaros e coisa pior. A pataquada petista foi tão grande que os urubus contrários logo quiseram embarcar no asco que a opinião pública sentiu de tudo aquilo – como se condenar a intolerância de um lado fosse o mesmo que concordar com as opiniões do outro. Não vi as imagens, mas fiquei sabendo que o metro quadrado ao redor da cubana era um dos mais disputados do país. A moça chegou meio perdida e, pelo que vi, cercada por amigos, cicerones e pelo grupelho de desocupados que lhe esperava com xingamentos à mão.

Com a repercussão da coisa, no dia seguinte a bancada tucana a convidava ao Congresso Nacional. Cheguei a me perguntar: “Será que ela sabe quem são esses senhores? Será que ela sabe que o Bolsonaro, aí do lado dela, tem as opiniões que tem?”. Duvido muito. Na verdade, o que vi foi uma coitada ser engolida pelas certezas alheias. Yoani não tem um décimo da importância que lhe deram no Brasil. Se lhe vestissem uma camiseta do Palmeiras e lhe convidassem depois para assistir a uma partida na arquibancada do Corinthians, acho que aceitaria, com aquele sorrisinho amarelo e seus longos cabelos. Pensei: “É furada. Lá vai a blogueira fugir da cruz em direção à espada!”.

Mas me enganei. Yoani provou, entre a última segunda e esta sexta-feira, que queria apenas falar, não importando onde fosse. Não é uma opinião, são os fatos. Onde a deixaram falar, ela falou, sem pergunta pré-aprovadas nem censura a críticos. Foi mesmo, malandramente incensada pela grande imprensa, que passou a dar destaque de encíclica papal a suas frases de efeito. Yoani falava, os portais quase escalavam Ilze Scamparini para lhe decifrar as palavras. Bastava uma fala sobre a liberdade, o amor e os brasileiros que violinos quase surgiam ao fundo. Mas de quem era mesmo a culpa pelo culto repentino que se formou em volta da cubana? Dela? Da imprensa? Não. A responsabilidade é exatamente daqueles que a calaram. Doces proibidos ficam automaticamente mais gostosos, mesmo que não sejam bons, e isso vale em São Paulo, na Bahia ou em Havana. O Brasil é talvez o país capitalista mais comunista que o mundo conheça. Somos a grande Fiel, a maior torcida organizada do regime castrista do mundo livre — e isso não é ruim. O problema não é a causa que nós defendemos, é o abuso e a intolerância com que a defendemos.

Seria até bonito que lutássemos tão aguerridamente por nossas posições políticas, mas infelizmente isso não é verdade. Felizmente, um Bolsonaro não representa o Brasil, tampouco um militante comunista. Yoani foi calada pela arrogância de alguns, mas principalmente pela apatia da maioria. Devíamos lutar mais para que qualquer um pudesse falar o que quisesse, e que – por favor – grupinhos de lado a lado parassem de falar em nosso nome sem pedir. Não é verdade que os protestos respeitaram os limites da civilidade, como não é verdade que quem os desaprovou queria silêncio. Fazer apitaço, bater tambor e gritar quando alguém começa a falar dentro de uma livraria, não é respeitar os limites.

A lição da passagem de Yoani pelo Brasil é a de que, para se respeitar minimamente um debate, é necessário se desapegar de ídolos, porque eles erram, e parar de odiar quem pensa diferente, porque eles acertam. Não há diálogo possível entre torcidas organizadas, e se insisto nessa analogia é porque a tragédia da Bolívia, onde corinthianos mataram um garoto com um morteiro, ilustra no que dá a intolerância e o desrespeito a regras que protegem a todos. O Corinthians vai seguir na Taça Libertadores da América sem torcida. Pelo que vi na internet, muita gente aprovaria que o time fosse simplesmente expulso da competição. Corinthianos, inclusive. E isso, senhores, é o mais importante: a capacidade que precisamos ter de aceitar os fatos, sejam eles favoráveis ou não às nossas paixões.

Estou querendo comparar um adolescente morto no estádio com uma jornalista agredida numa livraria? Claro que não. Porque a comparação entre os agressores é muito mais válida do que a comparação entre suas vítimas. Por toda a Europa, aonde ainda se ouvem histórias de gestos racistas nos campos de futebol, torcidas organizadas como os Hooligans foram simplesmente banidas do mapa do esporte. A demonstração de desrespeito no Brasil isenta o brasileiro comum da vergonha dos episódios desta semana, sim. Afinal, não havia cidadãos comuns nos protestos, e sim militantes partidários defendendo uma causa partidária. Mas assim como toda a torcida corinthiana precisa pagar pelo erro de um dos seus membros, seria sensato que o Brasil precisasse pagar por um de seus cidadãos. Não à toa relatórios recentes mostraram que nosso país anda muito mal no quesito liberdade de expressão, com o aumento dos casos de jornalistas processados, censurados e até assassinados. 2012 foi um ano particularmente infeliz para o jornalismo e a liberdade de expressão no Brasil. Assim como o time do Corinthians permitiu que marginais o representassem na Bolívia, o Brasil permitiu que militantes comunistas o representassem em aeroportos e livrarias. Não sou corinthiano nem comunista, mas tive vergonha de ser brasileiro esta semana.

A visita de Yoani Sánchez não deveria ter sido tão importante quanto foi. Uma blogueira que reclama do governo é como um torcedor que reclama do juiz, e nada mais. Há milhões e milhões deles. O caldeirão de fogo que assistimos não foi causado por ela, por sua voz mansa nem por seus cabelos longos. A importância de sua visita nasceu durante sua estadia, à medida que a falta de educação dos anfitriões era refletida pelo espelho do hóspede. Yoani não tem lições a dar à democracia brasileira. Os textos de seu blog são menos importantes do que o fato de haver uma mulher, dentro de Cuba, assinando e exibindo sua foto em textos que questionam o governo de seu país. O blog em si é mais importante do que o que ele diz. Espero que alguém tenha parado para pensar que, para contestar as queixas da cubana de que seu país não a deixa falar livremente, brasileiros não a deixaram falar livremente. Quando uma democracia deste tamanho não consegue resistir a uma blogueira com sandálias de couro e um computador à mão, a certeza de sua maturidade merece ser questionada.

Vivemos num país que, a muito custo, reconquistou o direito de falar o que pensa. Boa parte dos desocupados que agrediram Yoani e a impediram de falar é herdeira ideológica de gente que apanhou, foi perseguida e morta por um regime ditador. Apenas por isso, é impensável que exatamente estas pessoas queiram decidir quem pode e quem não pode falar neste país.

A semana que acaba hoje serviu para percebermos a pequeneza da blogueira cubana diante da imensidão de nossa própria babaquice. Deixou de ser importante o que Yoani poderia ter falado aos brasileiros, o importante foi a falta do que não falamos. Não importava mais o que ela diria, importava é que não a deixamos dizer. E isso é muito triste.

Viemos ao estádio democrático para assistirmos a uma partida de futebol em paz. Torcidas organizadas não servem para nada além de agredir e afugentar a plateia. No caso dos torcedores corinthianos, mesmo culpados por uma morte, é plausível que achemos que ninguém queria matar ninguém. Infelizmente não é o caso dos grupelhos que agrediram Yoani Sánchez. Eles queriam, sim, que a partida acabasse antes de começar.

Mal para o futebol, mal para a democracia.


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