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Ditadura, uma ova.

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Foto: EPA/Miraflores

Antes que achem que estou escrevendo contra Chávez, um aviso. É o contrário. O presidente morto foi eleito não uma, mas três vezes pelo povo. Tecnicamente, o que batiza uma ditadura é a supressão do voto. Além das eleições, Chávez convocou plebiscitos. A imprensa mundial pode estrebuchar em praça pública e dizer que as condições entre Chávez e a oposição eram desiguais. Não vai adiantar. A ‘imprensa livre’ pode denunciar o esfarelamento das instituições pelo presidente morto, como o poder judiciário, o direito de propriedade e os ataques à liberdade de imprensa. Não vai adiantar.

Pelo simples motivo de que Chávez teve a autorização soberana do seu povo para governar como lhe era mais indicado. Um presidente militaresco pode botar de joelhos juízes, jornalistas, prefeitos e empresários, mas ainda não há uma forma sistematizada de obrigar um povo, livre para votar, a reeleger um comandante de que não goste. Não havia nas ruas de Caracas, como em Pyongyang, uma multidão cercada por soldados e praticamente obrigada a chorar para as câmeras da tevê estatal. Vi pouco da comoção popular venezuelana, mas percebi que era – e ainda é – legítima.

Eu posso discordar dos métodos e principalmente das ideias de Chávez, mas não posso diminuir seu papel. Posso questionar como podem tantos jornalistas do mundo livre, alguns dos quais conhecidos e até amigos meus, podem defender tão bovinamente alguém que mandou fechar uma emissora de tevê. Mas isso não me credencia a duvidar da legitimidade de Hugo Chávez.

Não há democracia sem eleições. Questione-se a sabedoria do povo venezuelano para votar, mas não sua liberdade para tal. Antes de questionar sob que condições desiguais Chávez foi reeleito, a imprensa brasileira podia começar questionando sob que condições desiguais qualquer mandatário de turno é reeleito. Denunciar que Chávez competia em condições superiores aos adversários é ignorar a ordem natural das coisas. Correta ou não, a instituição do governo por decreto, tido como verruga do totalitarismo alheio pela imprensa nacional, é coisa natural no Brasil desde, vejamos, pouco antes do Plano Real. Chávez aumentou seu mandato de quatro para seis anos, e depois aprovou a reeleição eterna? Consta que foi tão soberana, livre e democraticamente (com o voto do parlamento e a aprovação do judiciário) quanto a emenda da reeleição brasileira, uma das mais casuísticas mexidas na constituição brasileira de que (não) se tem notícia dentro dos veículos da grande imprensa, e seu pioneiro beneficiário foi Fernando Henrique Cardoso, não Lula.

Não é opinião que até uma inundação em São Paulo, causada por um temporal, é obra de Deus ou incompetência do governo, se o governo for petista. Assim como é fato que o petismo se ocupa muito daqueles que ele odeia do que com seus triunfos. Conheço intelectuais amazonenses que ficaram anos e anos, nas redes sociais e nas colunas de jornal, vendendo frivolidades e ‘esquecendo’ de falar de política, local ou nacional, até que um tucano assumisse a Prefeitura de Manaus. Assim como a grande imprensa ‘esquece’ de suas ‘Escolas Base’, do teor alcoólico do futuro candidato à presidência e da ‘violação’ da Constituição a favor de FHC, os petistas aqui só ligam seu detector de mentiras se o paciente for do PSDB. E os vários escândalos dos governos locais?

O que tanto o PT quanto a grande imprensa brasileira (anti-PT) parecem ignorar é o efeito contrário de sua sanha contra o inimigo. No ambiente político e nos bastidores dos palácios esse clima beligerante pode ser o que mantém posições e lugares no poder de pé – política é isso, afinal. O erro começa a ser cometido quando a guerrinha interna tenta ganhar as ruas com os dois lados mentindo à população. Todo mundo enxerga quem só se escandaliza com o escândalo adversário, enquanto o correto seria que se ‘matassem’ defendendo ideias e formas de governo, mas deviam se unir contra a corrupção, por exemplo. Ok, é esperar demais que um político baixe a guarda e elogie ou critique posições adversárias, é do jogo político. Daí a aceitar que o que resta de elite intelectual abstenha-se da obrigação de questionar quem quer que seja, é um pouco demais. No Amazonas, enquanto pobres sem teto criticam os governantes com seu português errado no noticiário de tevê, os intelectuais massageiam o vernáculo para massagear o governo da hora. Antes que o pobre sinta fome, o escritor já fez uma crônica elogiando o arroz dado pelo governante.

Neste ponto, ainda somos melhores do que a Venezuela. Não porque somos livres e eles não, porque isso não é verdade. Não porque ainda respeitamos leis, liberdades e contratos – porque também temos esse talento. Mas simplesmente porque ainda possuímos uma classe média crítica, que pode ser minoria, mas existe. Ditaduras extinguem minorias, governos democráticos as compram. Melhor assim, qualquer democracia corrupta é melhor do que uma ditadura bem intencionada.

Não adianta tentar diminuir a figura política do presidente venezuelano morto. Chávez foi todo esse títere político sul-americano, sim. Infelizmente, mais do que um elogio à sua figura, essa constatação é um lamento pelo estado geral da política latina. Ainda somos o favelão do mundo moderno, mas somos também o continente mais revolucionário da história política humana. Chávez não foi o acidente trágico que a mídia tenta pintar. Foi o resultado natural e democraticamente eleito de nossa mais legítima veia latino-americana.

Seja isso bom ou ruim.


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